quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Crítica da Apresentação: "Natura y Cultura"

Na última sexta-feira, dia 4 de dezembro, fui a Campinas para assistir a uma apresentação de um professor da Universidade de Barcelona - cujas áreas principais de estudo são a filosofia analítica, filosofia da ciência e lógica -, convidado por minha orientadora para falar sobre "Natureza e Cultura" com nosso grupo de Auto-Organização (como vou criticar bastante a apresentação, me reservo o direito de não dizer o nome do professor que, de maneira geral, foi extremamente simpático). Resumo, abaixo, sua apresentação:

A idéia básica é tratar o genoma e o cérebro como processadores de informação (o primeiro confiável, de longo prazo, o segundo mais contingente, em "tempo real"). "As coisas mais importantes estão no genoma", disse ao início o professor, inclusive ações como, por exemplo, o reconhecimento de faces: neste caso, o genoma cria um cérebro que já tem estruturas capazes de realizar a tarefa. Sob este ponto de vista, a Cultura é vista como um tipo de informação, presente no cérebro e cujas unidades menores (os memes, nomenclatura popularizada por Richard Dawkins no livro O Gene Egoísta) encontram-se codificadas nas conexões neuronais. Tal concepção permite a existência de uma Cultura Individual, definida como o conjunto dos memes codificados no cérebro de um ser humano x num instante t; da mesma forma, o que ele chama de Cultura de Grupo é definido como a união de todos os memes presentes em todos seres humanos x pertencentes a um grupo G num dado instante t. Mais ainda, pode-se definir a grandeza Cultura Unânime como a intersecção dos memes presentes em todos seres humanos x pertencentes a um grupo G num dado instante t; este conjunto, segundo o professor, é vazio para grupos grandes como por exemplo a população de um país.

Se você não é sociólogo, ou de áreas afins, pode não ter notado certos problemas com esta descrição; ela pode parecer até bastante atraente do ponto de vista operacional, já que é possível operar matemática e logicamente com conjuntos, por meio de regras bastante bem definidas. Mas há alguns problemas importantes aí. Se definirmos Cultura apenas como o conjunto dos conhecimentos presentes no cérebro dos indivíduos, deixamos de lado uma série de estruturas sociais, modos de armazenamento externos (livros, história oral, blogs, etc.) e relações sócio-político-econômicas que estão disponíveis aos membros de uma sociedade, mas não necessariamente se encontram completamente refletidos em suas conexões neuronais. Em outras palavras: Cultura é muito mais que a soma dos conhecimentos dos indivíduos. Eu nunca li "Dom Quixote", mas este texto pertence à minha cultura, o que me permite ler um conto de Borges sobre este livro e entender o significado de um adjetivo como "quixotesco" e de uma metáfora como "moinhos de vento".

O professor espanhol usa uma abordagem bastante ortodoxa, cartesiana, ao dividir o ente "cultura" em suas manifestações individuais (cultura individual) e mais ainda em suas menores partes (memes). Mas, faz realmente sentido pensar em uma cultura individual? Cultura não deveria ser algo definido em função das relações entre seres humanos? Faz sentido dizer que a cultura de um grupo não envolve suas práticas sociais, simbolismos, tradições que podem moldar comportamentos sem serem necessariamente expressas em codificações neuronais? E que dizer da tal cultura unânime, que seria um conjunto vazio em grandes populações? Nós brasileiros  - como de resto, qualquer participante conjunto de indivíduos que se auto-denomina "nação" - não temos, então, uma história, instituições político-sociais, idioma e o escambau em comum?

O que aconteceu nesta apresentação foi um caso de duplo colonialismo: em primeiro lugar, o professor, vindo da Europa, chegou em nossas terras tupiniquins imbuído do objetivo de doutrinar os pobres nativos: sua apresentação foi pobre, e ele não esperava que os subdesenvolvidos conhecessem algo dos assuntos por ele tratados.

Numa segunda dimensão, trata-se do colonialismo freqüente entre ciências exatas ou naturais, de um lado, e ciências humanas, de outro: muitos cientistas das áreas ditas "duras" acham que as ciências humanas estão buscando desesperadamente um método que as permita ser ciências "de verdade", seja via matematização, seja via biologização dos temas das humanidades. Ao tratar um tema tão central nas ciências humanas  como é a Cultura (totalmente central, cerne mesmo da antropologia e da sociologia) seria de se esperar, minimamente, que o professor ao menos citasse os autores e escolas de pensamento destas áreas (minto, ele citou Lévi-Strauss para dizer que ele estava errado, pois o tabu do incesto é encontrado em outros animais - sugiro leitura mais detalhada do autor-, e Freud para dizer que é religião).

Vou contar dois segredos, por favor, não espalhem: 1. Nós cucarachas não estamos desesperados por receber o conhecimento pronto gerado no Norte (ao contrário, cremos ter capacidade de contribuir como parceiros para a geração de novo conhecimento) e 2. Nós das humanidades não estamos deseperados por receber prontos os métodos das ciências naturais. É claro que as ciências humanas têm muito o que aprender e utilizar das ciências mais formais, como a física e a matemática, e devem fortalecer sua interação com as ciências biológicas (que apresentaram um crescimento muito grande no último meio século); isto não significa transplantar a matematização das primeiras ou se reduzir às últimas, situações que acabam sendo sempre aventadas e que, de resto, foram tentadas em alguns momentos, seja por pensadores das próprias humanidades, seja por "colonizadores externos".

Um exemplo de tentativa de "colonização" foi a Sociobiologia, proposta pelo entomologista norte-americano Edward O. Wilson. Esta teoria afirma que o comportamento humano pode ser estudado exclusivamente por uma abordagem evolutiva; hoje, a Sociobiologia está desacreditada, mas sua "filha", a Psicologia Evolucionária ainda dá frutos e aparece com mais destaque na mídia do que as abordagens puramente sociológicas ou antropológicas. Wilson, quando lançou sua teoria, acreditava estar auxiliando as ciências humanas, trazendo-lhes uma base biológica; o biólogo não entendeu quando vieram as duras críticas por parte das humanidades.

Ora, o fundamento das críticas era, simplesmente, o fato de que o tema das humanidades estava sendo reduzido aos parâmetros de outra ciência. Tal redução desconsidera por completo todo o desenvolvimento teórico e todo o pensamento social produzido não apenas nos últimos séculos (desde o surgimento de disciplinas específicas das humanidades) mas também de toda filosofia social que remonta até os pré-socráticos. A questão aqui foi o tratamento dado às questões antropossociais como mero apêndice do mundo natural, a ele considerado redutível, desconsiderando completamente a dimensão simbólica e cultural das sociedades humanas, bem como sua enorme diversidade. Quando se fala de primatas, há certamente pontos a serem discutidos em comum; porém, comparar "sociedades" de insetos a "sociedades" humanas é pura e simplesmente chamar duas coisas completamente diferentes pelo mesmo nome. É postura semelhante a dizer: pra falar sobre essas bobagens, falamos nós, cientistas "exatos", já que todo conhecimento se reduz ao "nosso" conhecimento.

Ao se tratar com o respeito devido os desenvolvimentos teóricos das humanidades, todos teríamos a ganhar. Enquanto o ser humano for concebido, pelas humanidades, como ser incorpóreo e etéreo vivendo num mundo puramente cultural ou, pelas ciências naturais, como ser cujo comportamento é ditado exclusivamente por seu genoma, ele não terá sido realmente concebido. Apenas quando conseguirmos entender o fenômeno humano como simultaneamente cultural, biológico e psicológico (não apenas como uma composição destes, mas percebendo que cada uma destas dimensões está "entrelaçada", "acavalada", "entranhada" nas demais, à moda de uma conjunção complexa "&") é que poderemos começar o tratamento mais correto das questões relativas ao comportamento humano, sem nos deixar levar pelo canto da sereia da redução de nossa complexidade a uma simplificação mutiladora a um desses termos.

2 comentários:

  1. Se me ´permite um pequeno comentário de sua crítica meu caro, aqui está:
    Como um seguidor das chamadas "ciências duras" gostaria de apenas comentar que não é opinião corrente entre aqueles que desejam um maior poder de "previsibilidade" das Ciências Humanas que as mesmas sejam ramos bárbaros do conhecimento humano que devam ser colonizados e "civilizados", parafraseando suas palavras.
    De Mario Bunge a Feynman e outros que tateiam em tentar entender o fenômeno humano de maneira mais mensurável, alguns deslizes são quase inevitáveis. Desde muitas vezes não sabermos onde o objeto (pois na verdade o próprio pesquisador é o objeto em última análise) até as crenças pessoais que são tão ojerizadas, mas que estão tão presentes nas ciências exatas quanto em qualquer outra realização humana. Estes dois exemplos são patentes da dificuldade de se aventurar neste ramo.
    A crítica foi interessante para mim, principalmente porque me colocou em contacto com autores que ainda não conhecia.

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  2. Olá Vicente. Desculpe-me a demora em responder ao seu comentário (fim de ano, essas coisas). Você sabe que eu também defendo as abordagens interdisciplinares, e seria incoerente de minha parte ignorar as contribuições "de fora" de uma área de conhecimento que é a minha. A crítica permanece, entretanto, às aproximações que tendem a ignorar tudo o que foi produzido durante séculos. Muito já se discutiu, dentro das próprias ciências humanas, a repeito os temas que você colocou como exemplos (entrelaçamento entre sujeito e objeto e crenças pessoais); com isso, corre-se o risco de reinventar a roda. A crítica permanece, também, a respeito das abordagens reducionistas (como o pangeneticismo de até pouco tempo atrás).
    Agradeço muito o comentário, e acredito em suas palavras iniciais; porém, me parece que os profissionais menos acostumados ao diálogo realmente interdisciplinar têm a tendência a hierarquizar o conhecimento.
    Abraços

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