quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Ônibus 174

Dia 21, sexta-feira passada, a Sessão Solaris apresentou o documentário Ônibus 174. O filme começa seco; depoimentos sobre a vida nas ruas são rapidamente substituídos por cenas do seqüestro do ônibus... e depoimentos de policiais, reféns, especialistas. A narrativa é inteiramente construída por meio destes testemunhos, cenas reais do seqüestro e mostra de documentos oficiais; nenhum dos entrevistados é identificado e não há narração em off.

Seco.

Ao contar a história do seqüestrador Sandro Nascimento, o diretor José Padilha (do posterior Tropa de Elite) parte do particular para o geral, realizando uma análise sobre a miséria, a polícia, as instituições carcerárias. A vida de Sandro, que viu sua mãe ser assassinada e sobreviveu à Chacina da Candelária, foi um entra-e-sai de instituições correcionais. Sempre que estava livre, "no asfalto" - como dizem os habitantes das favelas do Rio de Janeiro, se referindo à vida "lá embaixo" - Sandro se envolvia com roubos, para sustentar sua dependência, da cola ao pó.

A violência gera violência: isso é lugar-comum. Mas o filme se sustenta na tese de que a invisibilidade gera a violência. Ainda que não seja um conceito dos meus preferidos, esta idéia de invisibilidade social é bastante intuitiva, ao pensarmos em nossas próprias atitudes com respeito de moradores de rua: depois de um tempo, realmente não os vemos, aprendemos a conviver com esses "invisíveis".

O documentário consegue nos deixar tensos - apesar de já conhecermos o resultado final - ao construir sua narrativa intercalando entrevistas com reféns e suas cenas no interior do ônibus. Aliás, vale lembrar que outra dimensão explorada por Padilha é a mídia. O ônibus é sempre visto cercado de repórteres e câmeras, o que cria dois níveis de realidade: a "realidade" dentro do ônibus e a "realidade" mostrada pelas câmeras. A polícia teve várias oportunidades de atirar no seqüestrador, mas não o fez para não expor o público a um espetáculo de sangue e massa encefálica ao vivo em suas TVs. A presença da imprensa ali, aliás, é culpa da própria polícia, que deveria ter criado um cordão de isolamento muito mais distante do cenário do seqüestro, até mesmo para proteger as pessoas.

Da mesma forma que a violência e o abandono só nos atingem em cheio quando transpostas do mundo para um filme, a realidade "dentro do ônibus" se distingue da "realidade" nas telas da TV. Como eu disse em outro post, sobre o filme Laranja Mecânica, citando o protagonista Alex: "Engraçado como as cores do mundo real só parecem realmente reais quando você as videia na tela".

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Um Louco Sonha a Máquina Universal

A metamatemática é algo como uma "metodologia das ciências dedutivas", nas palavras de Hilbert, ou, de modo mais simples, ela estuda a matemática, utilizando instrumentos da lógica e da própria matemática. Kurt Gödel e Alan Turing são dois dos maiores nomes da metamatemática e têm partes de suas vidas contadas no livro "Um Louco Sonha a Máquina Universal", de Jenna Lewin.

Alan Turing é um dos pais da ciência da computação. Seu artigo de 1936, "Sobre os números computáveis com a aplicação ao problema da solucionabilidade", mostrava que todas funções computáveis poderiam ser reduzidas a procedimentos simples sobre uma fita (infinita), como um 'programa' sendo executado e alterando uma 'memória'. As chamadas Máquinas de Turing - presentes, aliás, no título original (A Madman Dreams of Turing Machines) do livro - são apenas teóricas, mas a partir deste desenvolvimento abstrato foi possível construir as máquinas reais que são os computadores. Turing trabalhou também na contra-espionagem inglesa durante a Segunda Guerra Mundial, na decifração de mensagens codificadas interceptadas dos nazistas. Mas Turing é mais conhecido popularmente por causa do teste que propôs para sabermos se um computador é consciente ou não: o chamado Teste de Turing afirma que é necessário, para demonstrar a consciência em uma máquina, que esta seja capaz de nos convencer, conversando conosco tempo suficiente, que estamos na verdade conversando com um ser humano.

Já Gödel é conhecido por seu Teorema da Incompletude: qualquer sistema formal capaz de expressar a aritmética não pode ser ao mesmo tempo completa e consistente. Teoria completa é aquela em que todas as proposições verdadeiras podem ser demonstradas Teoria consistente é aquela na qual não é possível demonstrar uma proposição e sua própria negação. Ou seja, o que o teorema da incompletude demonstra é que sempre há em uma teoria consistente proposições verdadeiras que não podem ser demonstradas ou negadas. A conseqüência disso é que a aritmética não pode demonstrar sua própria consistência, sendo necessária a utilização de um sistema mais amplo (uma extensão da aritmética) para fazê-lo.

Mas estes desenvolvimentos são descritos apenas de passagem pela autora. O livro de Lewin segue o caminho de tentar descrever a psicologia dos personagens principais, por meio da apresentação de alguns eventos ocorridos em suas vidas, intuindo quais disposições e estados mentais dos personagens os fariam desenvolver suas teorias. Desta forma, a narrativa é bastante fragmentada, não permitindo que nos identifiquemos com nenhum dos personagens principais. Esta identificação seria, de qualquer forma, bastante difícil, pela estranheza das próprias pessoas que foram Turing e Gödel.

Estranhamente, os personagens secundários são os mais interessantes do livro. As relações de Gödel com membros do Círculo de Viena, e indiretamente com Wittgenstein dominam boa parte do livro. No caso de Turing, suas paixões platônicas e 'reprováveis' - ele era homossexual - são tratadas com mais detalhe. É enfatizado seu trabalho na decifração de código do Enigma - máquina de codificação utilizada pelos nazistas - mas sem uma descrição detalhada sobre como este trabalho era realizado.

Turing acaba condenado (homossexualismo era crime na Inglaterra) à castração química. Gödel se torna paranóico, achando que seria envenenado. Cada um a seu modo, ambos se suicidam.

Enquanto o suicídio de Turing - comendo uma maça envenenada ao estilo Branca de Neve - aparece como uma conseqüência inexorável, mecânica do desenvolvimento de sua vida, o lento suicídio de Gödel representa uma forma de demonstrar seu livre-arbítrio: cinco meses praticamente sem comer, uma inanição auto-infligida pela paranóia e pelo desejo de demonstrar que ele podia, sim, realizar escolhas, ainda que impossíveis. Retomarei este ponto quando terminar o próximo livro de minha lista (Boomerite: um romance que tornará você livre, de Ken Wilber), no qual o personagem principal afirma que o verdadeiro teste para saber se uma máquina é consciente seria saber se ela pensa seriamente em suicídio...

Infelizmente, o livro deixa a desejar. Eu adoraria ver uma obra que conseguisse explicar, de maneira simples para um leitor esclarecido, o funcionamento de Máquinas de Turing, os métodos de decifração utilizados por ele durante a guerra, o teste de Turing (que não é tão simples como eu descrevi acima). Os teoremas de incompletude de Gödel também podem ser descritos de maneira simples, ainda que suas conseqüências ainda gerem discussões até entre os matemáticos e lógicos. Não foi dessa vez.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

A Clockwork Orange (Laranja Mecânica)


Quase um mês após a última postagem, volto a este blog. Férias (curtíssimas), início de aulas, retorno ao doutorado, tudo isso me afastou por um tempo. Mas agora prometo ao menos um post por semana.

Para os que não sabem, o Núcleo de Humanidades da UFBA em Barreiras promove todas as sexta-feiras a "Sessão Solaris", composta pela apresentação de filmes e realização de seminários e mesas redondas; as sessões são abertas a todos. Neste mês de agosto o tema é "Violência", e nada melhor para começar do que o filme Laranja Mecânica (A Clockwork Orange).

Aos que não viram o filme, aviso: há muitos spoilers neste texto. Prossiga por sua conta e risco...

Este não é um filme fácil: gírias inventadas (pelo escritor Anthony Burgess, autor do livro original), violência, estupros, lavagem cerebral. Tive até um certo receio de passá-lo no Solaris, já que nossa principal audiência são nossos alunos, alguns bastante novos (abraços ao pessoal do BI, sempre presente). Mas a recepção foi boa: não sei se o filme perdeu um pouco de seu impacto devido à banalização da violência atualmente, mas vá lá: o fato é que o filme foi bem recebido. A direção de Stanley Kubrick ajuda muito: a mistura de um cenário meio pós-moderno com a música clássica criaram uma atmosfera que me traz à mente filmes como Blade Runner, e o cenário cyberpunk que só na década de 80 vai fazer o seu debut na literatura e no cinema. Coisa de precursor mesmo.

O protagonista Alex (o carismático Malcolm McDowell, que protagoniza outro clássico esquisitão, Calígula, e hoje pode ser visto como vilão de séries como Heroes) lidera uma gangue violenta, num futuro próximo - quer dizer, futuro de 1971, quando o filme foi lançado - e adora Beethoven. Nesta primeira parte do filme, acompanhamos uma bela noite de Alex e seus drugues: espancamentos, brigas de gangue, estupros... Encurtando a história, ele acaba preso e submetido a um tratamento experimental, a Técnica Ludovico (uma quase-citação a Pavlov). Alex é induzido, por esta técnica, a não conseguir suportar qualquer tipo de violência, passando fisicamente mal quando exposto a ela.

Já contei demais sobre o filme, mas o suficiente para fazer algumas reflexões. O filme pode ser interpretado em vários níveis, desde o mais raso e vermelho (cor do início e do final na tela) de um filmes simplesmente violento, até conceitos mais elaborados a respeito da própria violência e do livre-arbítrio.

Questão: após a lavagem cerebral, Alex conseguiria assistir ao filme que conta sua própria história?

Nós conseguimos. Talvez isso signifique que temos uma certa "tolerância" à violência. Pensando bem, isso deve ser verdade, pois, do contrário, não conseguiríamos sobreviver num mundo cheio de violência natural e numa sociedade repleta de violência criada por nós mesmos. Assim, mesmo que fiquemos enojados com alguns acontecimentos (do filme ou da vida) há um certo nível de violência que podemos agüentar. Este nível muda? Certamente! Momentos anteriores na história humana certamente eram mais violentos (no que diz respeito à violência indivíduo-indivíduo); com a modernidade, passamos a crer que o Estado seria o único detentor legítimo da violência (usando a formulação de Max Weber), o que levou a ficarmos mais chocados com a modalidade indivíduo-indivíduo, mas permitiu também que o século XX tenha sido prodigioso em violência de massa (guerras mundiais, genocídio).

É tirada de Alex a capacidade de "não-se-chocar" com a violência. É tirado seu livre-arbítrio. Em nenhum momento ele é levado a julgar seus atos, é apenas impedido de executá-los. E aqui temos a ambigüidade - e genialidade - do título: ao mesmo tempo que a expressão "laranja mecânica" é usada (ao menos no livro de Anthony Burgess) como uma gíria para "porra-louca", o termo evoca a imagem de algo suculento e colorido, mas de fato apenas um brinquedo mecânico nas mãos de Deus ou do Demônio (e aqui estou parafraseando o próprio Burgess). Alex é esse ser híbrido ("hibridizado"), ser vivo que foi mecanizado por métodos pavlovianos. Não sei porque me vem à cabeça a imagem de Supernanny...

Parece muito fantasioso? Deixo vocês com minha nota (é, sou metido a crítico, esse é nota 10!) e com uma frase do próprio Alex, para reflexão:

"It’s funny how the colours of the real world only seem really real when you viddy them on the screen."
(Engraçado como as cores do mundo real só parecem realmente reais quando vocês as videia na tela)
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