segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Viagem a Canudos

Neste último fim de semana, dias 28 e 29 de novembro, participamos de uma excursão para Canudos/BA, com os alunos do Bacharelado Interdisciplinar de Ciência e Tecnologia. A viagem foi muito boa, em diversos aspectos (relevando ônibus com ar condicionado quebrado, atrasos e confusões com pousadas e transportes).

Após uma longa jornada de ida (14 horas de ônibus), fizemos uma primeira parada em Euclides da Cunha, onde utilizamos o auditório da UNEB para dar as primeiras instruções aos alunos quanto ao trabalho de campo. A idéia foi dividi-los em 10 grupos que devem criar pequenos documentários de 10 a 20 minutos de duração, sobre temas especificados por nós e referentes à Guerra de Canudos.

Mais uma hora no ônibus e chegamos a Monte Santo, cidade pequena mas muito bem arrumada, onde Antonio Conselheiro restaurou as 24 capelinhas da Via Sacra. Subida infernal para chegar ao topo do tal Monte, onde Prof. Sandro incorporou o "Bom Jesus Conselheiro" e pregou para nós em frente à igreja, explicando (e exemplificando um pouco, hehe) aos alunos e demais professores o significado do messianismo naquela região.

Depois de uma descida quase tão ruim quanto a subida, tivemos que esperar um tempo na praça da cidade, mas valeu a pena: o pessoal do Museu do Sertão o abriu para nós, já às 19hs. Os alunos tiveram a oportunidade de ver diversos artefatos, armas e fotos da época da Guerra de Canudos, e tiraram várias fotografias para o trabalho. Na saída, Profa. Deborah participou de um "escambo simbólico": deu um pouco de atenção numa boa conversa com uma senhora da cidade e ganhou em troca umas laranjas (sob a reprovação bem-humorada dos Profs. Juarez e Gilmara). A situação me lembrou o "Ensaio Sobre a Dádiva", de Marcel Mauss, no qual se decreve a troca (mesmo simbólica) como base para a sociabilidade humana: Deborah, ao aceitar as laranjas, colocou-se (e, por extensão, a nós todos) na "família" de Monte Santo.

Dali partimos para Canudos Nova, onde visitaríamos bem cedo no dia seguinte (apesar de só conseguirmos jantar à meia-noite, dormindo muito pouco nesta noite) o Parque de Canudos, mantido pela UNEB. Esse passeio foi realmente muito bom, especialmente para entendermos melhor o carisma de Conselheiro e a loucura de seus estimados 25 mil seguidores, acreditando que aquele local árido e de solo pedregoso seria o futuro paraíso. Ali os alunos puderam conversar com os professores sobre o que viam ao seu redor, reforçando o caráter interdisciplinar da atividade. Visitamos ainda o Memorial Antonio Conselheiro, que tem recortes de jornais da época da Guerra e onde assistimos a um curta de Jorge Furtado sobre o tema.

Finalmente, encerramos os trabalhos no lago de Cocorobó, mas a reunião programada acabou acontecendo só na frente do ônibus, já nos aprontando para a partida: relaxamos um pouco na beira do lago, nos preparando para as próximas 15 horas de viagem.

Se o trabalho foi bom, a parte de integração do pessoal foi ótima. Alunos puderam interagir com outros que não fazem parte de seu círculo de amizades, com outros professores além dos que ministram as disciplinas do primeiro ano e os próprios professores puderam conhecer melhor uns aos outros e aos alunos do BI-C&T. De minha parte, pude interagir mais com vários alunos. Logo na ida, tive a companhia de Adriana e Amisael, e depois da doidinha da Drika e da Dulce, sempre quieta nas aulas e muito gente boa. Agradeço Mariana, Romário e Natália pela companhia na descida do Monte Maldito, digo Santo (junto ainda com Taíse e e minha "filhinha" Lorena), na cerveja do domingo e na viagem de volta. Foi ótimo trabalhar com meu grupo, Vanusa, Ícaro, Danielle, Aline (Cíntia, vc também estava? hehe) Agradeço também a todos que me pintaram, passaram pasta de dentes, tiraram fotos impróprias e todo tipo de sacanagens a que fui submetido neste fim de semana :) E, Gislene, você vai aprender Física, relaxa e estuda :o)

Pude também conhecer as Profas. Gilmara e Larissa e conversar um pouco com o Prof. Juarez. Agradeço aos Profs. Camila, Vicente e Deborah por me ajudarem a "domar os leões"; também ao Prof. Sandro pela idéia e iniciativa para a viagem. Last but not least, grande abraço ao Prof. Gredson que, infelizmente para nós, vai seguir seu caminho em outra universidade. De bom humor mesmo depois de 2 dias e meio de estrada, competente e sossegado, só resta desejar boa sorte no seu novo caminho. Mas você vai fazer falta aqui, cara.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Gil e as Licenças Flexíveis

Continuando, depois de muito tempo, um post em que comecei a falar sobre liberdade na internet, vou falar um pouco sobre a atuação do cantor Gilberto Gil. Digo o "cantor" para diferenciá-lo do (ex-)"Ministro", uma vez que ele nem sempre pôde aplicar na esfera pública as idéias que prega na vida pessoal.

Uma das últimas turnês do cantor chamou-se Banda Larga Cordel; a turnê começou na África, e os shows começavam com a seguinte exortação ao público: "Liguem seus celulares! Filmem o que quiserem, fotografem, gravem suas canções preferidas e coloquem como ringtones nos seus telefones. Participem. Colaborem. Publiquem no site www.gilbertogil.com.br".

O que as grandes distribuidoras proíbem, Gil incita...

Gil avança em direção ao compartilhamento: é possível baixar samples de suas músicas no site, de maneira completamente legal, remixá-los e compartilhar com os outros (até mesmo com Gil, cujo site publicas as remixagens recebidas. Isto pode ser feito de maneira legal porque Gil está disponibilizando suas músicas sob uma licença Creative Commons.

Como funciona esta licença? Bem, primeiro é necessário saber como funcionam os direitos autorais. No Brasil, a Lei 9.610/98 divide os direitos autorais em duas categorias: direitos morais e direitos patrimoniais. Direitos morais dizem respeito à autoria de uma obra: este direito é irrenunciável, você sempre será o autor de suas obras. Já os direitos patrimoniais dizem respeito ao modo como você deseja utilizar sua obra: reprodução, licenciamento, permissão de modificação, etc. A lei é rígida, pois mesmo a reprodução (parcial que seja) de sua obra depende de sua autorização prévia.

Aqui entram as licenças Crative Commons (CC): ao contrário do CopyRight ©, que afirma serem "Todos os direitos reservados ao autor", nas licenças CC você define previamente quais direitos deseja manter reservados, e de quais direitos você abre mão (ou quais tipos de uso você autoriza, antecipadamente, que sejam efetuados); em outras palavras, a licença CC afirma serem "Alguns direitos reservados ao autor", e você pode definir quais são estes direitos.

As licenças CC funcionam com algumas modalidades de direitos. Por exemplo, você pode usar uma licença "BY" (atribuição) que permite a reprodução de seu texto, mas exige que você seja citado como o autor. Perceba que caso não use uma licença "BY", você permite a reprodução de seu texto sem indicação de autor, mas você ainda é o autor - o direito moral da autoria não é alienável.

Se você não especificar, o conteúdo de sua obra pode ser alterado; caso não deseje isto, você pode escolher a modalidade "ND", que impede alterações. Esta modalidade pode ser útil, por exemplo, para uma obra literária que você deseje manter íntegra.

Outra modalidade diz respeito ao uso comercial de sua obra. Uma licença "NC" indica uso não comercial. Isto significa que qualquer pessoa pode reproduzir sua obra, mas apenas se não for ganhar dinheiro com ela. Se você não especificar esta modalidade, terceiros poderão modificar sua obra e vender o produto (por exemplo, alguém pode pegar um conto meu, quadrinizá-lo e vender sua Graphic Novel para uma editora; ou, ainda, alguém pode samplear trechos de sua música e criar novas músicas, que poderão ser vendidas num CD).

Finalmente, uma modalidade que tem estreito parentesco com o mundo do Software Livre é a "SA": esta licença exige que quaisquer obras derivadas da sua carreguem a mesma licença. Este é o conceito de herança, que tem relação com certos modos de programação (em especial, a programação Orientada a Objetos). Este tipo de licença faz com que a própria licença Creative Commons se torne tanto mais disseminada quanto as obras originais que a carregam sejam utilizadas.

As modalidades são utilizadas em conjunto. Veja no primeiro quadro à esquerda a licença utilizada por este blog: BY-NC-SA (Atribuição, Uso Não Comercial, Compartilhamento pela mesma licença). Isto significa que você pode reproduzir qualquer texto deste blog, e mesmo modificá-lo, desde que indique que o autor do original sou eu, desde que não publique em qualquer meio pago (não ganhe dinheiro com isso) e que qualquer produto derivado (qualquer texto seu que tenha como base o meu) deve carregar esta mesma licença BY-NC-SA.

Agora, você pode perguntar, e se você quiser pegar um texto meu, do blog, e utilizá-lo numa apostila (ou seja, ganhar dinheiro com isso)? A licença não permite; é possível fazê-lo? Bem, aí caímos num caso que não foi antecipadamente autorizado. Caímos no escopo da lei e, portanto, você deve agir como agiria no caso de um CopyRight: entre em contato comigo e podemos negociar; eu posso acabar nem cobrando nada de você, ou podemos fazer um contrato. Em outras palavras, as licenças CC não "quebram" a lei, elas caem em seu artigo 29, que afirma a necessidade de "autorização prévia e expressa do autor" para determinados usos.

Gilberto Gil está disponibilizando todas sua discografia neste formato. Ele teve, entretanto, alguns problemas para fazê-lo. Em especial, suas músicas mais antigas não eram mais suas! Ou, pelo menos, o direito de dispor delas como quisesse não era mais seu, pois nos contratos com gravadoras normalmente os autores abrem mão de seus direitos patrimoniais. Gil está regravando novas versões das músicas antigas, para poder disponibilizá-las sob licenças CC.

Em breve publicarei um conto aqui no blog, sob uma licença CC; você poderá modificá-lo, quadrinizá-lo, filmar um curta, fazer um flash com ele, tudo já previamente autorizado. Mas se quiser ganhar uma grana com isso, entre em contato...

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Boomerite - Um romance que tornará você livre


Este blog anda muito devagar, especialmente por conta de meu trabalho com o doutorado. Mas prometo que agora volto a postar pelo menos uma vez por semana. (Re-)começo com a análise do livro que já encerrei há mais de um mês.

Boomerite - Um romance que tornará você livre, de Ken Wilber, é tudo menos um romance; também não é auto-ajuda, apesar do título (irônico). Trata-se principalmente de uma análise do mundo da alta modernidade em que vivemos.

O autor (fundador do Centro Integral, que visa desenvolver estudos nas mais diversas áreas, tendo em comum a idéia de que estamos na aurora de uma "evolução" psicológica da humanidade) já escreveu o modesto livro Uma Teoria de Tudo (cujo título ele garante também ser irônico), no qual desenvolve a maior parte de sua filosofia integral. Em Boomerite, sua filosofia é deixada um pouco de lado (aparece no final, na pior parte do livro); o que se lê é uma seqüência de seminários destinados a demonstrar parte de sua tese: que a sociedade atual (em especial a americana) é caracterizada por uma mistura de pluralismo com narcisismo.

Pluralismo, em si, não seria algo ruim, pois permitiria tanto a convivência quanto o diálogo entre pessoas e grupos diferentes. Entretanto, quando combinado com um ego gigantesco, ele termina por impossibilitar o diálogo. Quantas vezes você já percebeu que duas pessoas "parecem" estar dialogando quando, na verdade, cada uma está dizendo coisas que o outro nem ouve?

O livro vai, então, apresentando dimensões da vida social em que se percebe este "ego inflado" e pseudo-pluralista. Algumas situações são bastante específicas dos Estados Unidos (como a cultura de vitimização); já outras dizem respeito também à nossa realidade politicamente correta.

O próprio título do livro é muito específico dos EUA, ao fazer referência à geração do pós-Segunda Guerra (Baby-Boomers); quanto ao subtítulo "um romance que vai fazer você livre" trata-se de uma ironia explicitada no texto: os maiores best-sellers dos EUA na década de 90 traziam em seu nome as palavras você e liberdade.

O grande problema do livro aparece quando acaba a crítica e são apresentados alguns pressupostos do pensamento integral. Neste ponto do livro, pode-se perceber a fragilidade do argumento e a tendência a se cair em "espiritualismos nova-era". As análises políticas também são sofríveis: considerar o governo FHC, juntamente com propostas da era Clinton e o "novo" conservadorismo de Bush como indicadores de que o mundo ruma em direção a uma ruptura com modos de vida pré-integrais é brincadeira...

Ainda assim, a leitura vale pela análise crítica do munto atual, inclusive o acadêmico. Você pode não concordar com o remédio proposto (filosofia integral), mas o diagnóstico é bem agudo. Segue um trecho da introdução:

Algo parece certo: sou um filho desses tempos e eles apontam para duas direções totalmente incompatíveis. Por um lado, ouvimos constantemente que o mundo está fragmentado, dilacerado e torturado, à beira de um colapso, com imensos blocos de civilização massificados, tentando afastar-se uns dos outros, com intenções crescentemente alienadoras, de tal modo que guerras internacionais de culturas são a maior ameaça para o futuro. A tecnologia da era cibernética está evoluindo tão rapidamente que, diz-se, dentro de trinta anos teremos máquinas atingindo inteligência de nível humano, ao mesmo tempo em que avanços em engenharia genética, nanotecnologia e robótica significarão o possível fim de toda a humanidade: seremos substituídos por máquinas ou destruídos por uma peste branca – e que tipo de futuro é esse para uma criança? Em nosso país, a cada dia, a cada hora, a cada minuto, defrontamo-nos com exemplos de uma sociedade que está se esfacelando: uma taxa nacional de analfabetismo que cresceu assustadoramente de 5% em 1960 para 30% hoje; 51% das crianças em Nova York são filhos ilegítimos; milícias armadas espalham-se por Montana tal como bunkers nazistas sobre as praias da Normandia, preparadas para a invasão; uma série de guerras de culturas, guerras de gêneros, guerras de ideologias na academia, que se comparam em malignidade, se não em forma, à agressão multicultural no cenário internacional. O globo ocular de meu pai, na minha cabeça, vê um mundo de fragmentação pluralista, pronto a desintegrar-se, deixando, na sua esteira turbulenta, uma massa desfigurada de sofrimento humano sem precedentes na história.

O olho de minha mãe vê um mundo totalmente diferente, embora tão real quanto o primeiro: estamos nos transformando, paulatinamente, numa família global e o amor, em todas as suas manifestações, parece ser a força propulsora. Veja a história da raça humana: de tribos e bandos isolados a grandes cidades agrícolas, a cidades-estados, a gloriosos impérios feudais, a estados internacionais, à aldeia global. E agora, às vésperas do milênio, estamos em face de uma estonteante transformação nunca antes vista pela humanidade, onde o vínculo humano, tão intenso e tão profundo, descobrirá Eros pulsando gloriosamente nas veias de cada um e de todos, sinalizando a alvorada de uma consciência global que transfigurará o mundo como o conhecemos. Ela é uma pessoa doce e vê o mundo assim.

Não compartilho nenhuma das duas visões; ou melhor, compartilho ambas, o que me torna quase insano. Claramente, forças gêmeas, embora não só, estão devorando o mundo numa escala colossal: globalização e desintegração, amor unificador e desejos corrosivos de morte, delicadeza que aproxima e crueldade que afasta. E o filho bastardo, esquizofrênico, propenso a ataques, vê o mundo através de um vidro trincado, movendo vagarosamente sua cabeça para frente e para trás, esperando que se formem imagens coerentes, imaginando o que significa tudo isso.
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