
Dia 21, sexta-feira passada, a Sessão Solaris apresentou o documentário Ônibus 174. O filme começa seco; depoimentos sobre a vida nas ruas são rapidamente substituídos por cenas do seqüestro do ônibus... e depoimentos de policiais, reféns, especialistas. A narrativa é inteiramente construída por meio destes testemunhos, cenas reais do seqüestro e mostra de documentos oficiais; nenhum dos entrevistados é identificado e não há narração em off.
Seco.
Ao contar a história do seqüestrador Sandro Nascimento, o diretor José Padilha (do posterior Tropa de Elite) parte do particular para o geral, realizando uma análise sobre a miséria, a polícia, as instituições carcerárias. A vida de Sandro, que viu sua mãe ser assassinada e sobreviveu à Chacina da Candelária, foi um entra-e-sai de instituições correcionais. Sempre que estava livre, "no asfalto" - como dizem os habitantes das favelas do Rio de Janeiro, se referindo à vida "lá embaixo" - Sandro se envolvia com roubos, para sustentar sua dependência, da cola ao pó.
A violência gera violência: isso é lugar-comum. Mas o filme se sustenta na tese de que a invisibilidade gera a violência. Ainda que não seja um conceito dos meus preferidos, esta idéia de invisibilidade social é bastante intuitiva, ao pensarmos em nossas próprias atitudes com respeito de moradores de rua: depois de um tempo, realmente não os vemos, aprendemos a conviver com esses "invisíveis".
O documentário consegue nos deixar tensos - apesar de já conhecermos o resultado final - ao construir sua narrativa intercalando entrevistas com reféns e suas cenas no interior do ônibus. Aliás, vale lembrar que outra dimensão explorada por Padilha é a mídia. O ônibus é sempre visto cercado de repórteres e câmeras, o que cria dois níveis de realidade: a "realidade" dentro do ônibus e a "realidade" mostrada pelas câmeras. A polícia teve várias oportunidades de atirar no seqüestrador, mas não o fez para não expor o público a um espetáculo de sangue e massa encefálica ao vivo em suas TVs. A presença da imprensa ali, aliás, é culpa da própria polícia, que deveria ter criado um cordão de isolamento muito mais distante do cenário do seqüestro, até mesmo para proteger as pessoas.
Da mesma forma que a violência e o abandono só nos atingem em cheio quando transpostas do mundo para um filme, a realidade "dentro do ônibus" se distingue da "realidade" nas telas da TV. Como eu disse em outro post, sobre o filme Laranja Mecânica, citando o protagonista Alex: "Engraçado como as cores do mundo real só parecem realmente reais quando você as videia na tela".